19 de março de 2011

Discurso do Presidente, reações e a minha perplexidade

Deve ser cegueira imputável à minha qualidade de economista, mas para espanto meu, e a contrario da minha área política,  li o discurso de tomada de posse do Presidente e estou de acordo com ele, fora algumas questões de pormenor. Mais, gostei do discurso - vem na linha daquilo que acho que deveria ser a intervenção pública tipo da classe política portuguesa: - ora, até se apela à mudança de comportamentos e à mobilização dos cidadãos! Eu estava à espera de algo diferente que me confortasse com o meu voto em branco. 

Este discurso peca por tardio, não só da parte de Cavaco, como de todos os outros. Já Durão Barroso podia tê-lo feito, Santana Lopes não porque declarou a crise terminada, e tenho pena que o Sócrates não o tenha feito no início do seu mandato - o seu pecado mortal foi não ter dado atenção ao que o seu primeiro Ministro das Finanças lhe queria alertar.

Realmente, Cavaco poderia ter referido a crise internacional, e isso não era difícil de enquadrar na lógica do discurso, mas que não haja dúvida, que aquela só serviu para detonar uma situação insustentável de desequilíbrio das contas com o exterior que se prolongava desde o início da década anterior. A resposta que foi dada à crise, no quadro é certo de uma resposta europeia (mas deveria ter sido uma resposta portuguesa contida), juntou àquele problema o agravar do desequilíbrio das contas do Estado. É óbvio que Cavaco deveria ter falado ao povo português antes, sobre tudo isto, mas atendendo a estas reações, ele deverá saber muito mais do País, e da sua classe política, do que eu desconfio não saber.

Na verdade, a minha perplexidade reside, principalmente, e em primeiro lugar, nas reações da parte do Partido Socialista. O discurso é objetivamente incómodo para o Governo, mas sê-lo-ia de qualquer maneira atendendo à situação atual. Seria sempre posicionalmente incómodo. Mas é deslealmente incómodo? Carreia falsidades? Tenho reparos sobre a validade das "retórica ameaçadora..." e da tese que a má convivência entre poder político e interesses particulares seja uma questão dos últimos anos - isso não é verdade; aconteceu no seu tempo de primeiro ministro; quanto muito poderia ser argumentado que atingiu limites anormais, e isso teria de ser provado. Mas tudo visto, não consigo ver nele um discurso de fação. 


O discurso pode ter sido feito em boa fé, no sentido de que o autor desejaria que fosse lido pelo seu valor facial, mas se o não foi, foi muito bem feito, e por quem conhece bem com quem lida, do ponto de vista político. Para mim o discurso(tentem lê-lo como não sendo escrito por Cavaco)é politicamente correto e centrista, consensual do ponto de vista de diagnóstico económico. Que tenha merecido as reações que mereceu do PS, diz muito sobre o próprio partido, e agora, não só sobre a área do Manuel Alegre e de Carlos César. Que a direita o use como bandeira era de esperar, mas esse aproveitamento teria sido esvaziado se em tempo as coisas fossem chamadas pelos seus nomes - e devê-lo-iam ter sido, e podê-lo-iam ter sido. Em Portugal a classe política não acredita que os cidadãos sejam sensíveis a discursos de "sangue, suor e lágrimas" como modo de os mobilizar - os discursos de "sangue, suor e lágrimas" só servem para imputar as responsabilidades aos outros políticos. E de novo, este discurso consegue ser do ponto de vista formal o que de mais parecido poderia ser um discurso adequado e (tendencialmente) equidistante de "sangue, suor e lágrimas". Quem o transforma, subjetivamente, em algo diferente foram os agentes políticos: os agentes políticos e os comentadores.

É nos comentadores que radica a outra parte da minha perplexidade . Quase todos concordaram que era um discurso de ataque ao governo, sancionando a opinião unânime da classe política, e que o "sobressalto cívico" - gostei da expressão - era um incentivo à manifestação (não me cheira, e estou de acordo com a necessidade de um sustentado sobressalto cívico). A substância do discurso foi totalmente marginalizada. Independentemente do que queria Cavaco, política e taticamente,  aquilo que é dito é correto ou não? é exagerado ou não? há alternativa ou não? Enfim, se Cavaco queria mobilizar, consciencializar, alertar os cidadãos, aí perdeu: foi arrumado a um dos lados da contenda que irrita cada vez mais o comum dos portugueses.

Bem, talvez quem não percebe nada de nada, seja eu, e convenhamos, isso é o mais verosímil. Em todo o caso leiam o raio do discurso, como aconselhou Cavaco - aliás, foi esse repto que me obrigou, por uma questão de correção e honestidade intelectual, a lê-lo: - o discurso, da minha parte, face às reações já estava "pesado, contado e medido". Em todo o caso, este é  o discurso político de que mais gostei, em muitos anos, mas, para qualificar isso, terminaria esta nota como a comecei, acentuando (sardonicamente) que tal dever-se-á, muito provavelmente, ao facto de eu ter a pecha de ser economista.

Discurso de Tomada de Posse do Presidente da República - INTERVENÇÕES - PRESIDENCIA.PT: "Como sempre tenho afirmado, só um diagnóstico correcto e um discurso de verdade sobre a natureza e a dimensão dos problemas económicos e sociais que Portugal enfrenta permitirão uma resposta adequada, quer pelos poderes públicos quer pelos agentes económicos e sociais e pelos cidadãos em geral. A informação objectiva sobre a situação económica e social do País é um bem público que beneficia a sociedade no seu conjunto, porque estimula comportamentos favoráveis à resolução das dificuldades.

Os indicadores conhecidos são claros. Portugal vive uma situação de emergência económica e financeira, que é já, também, uma situação de emergência social, como tem sido amplamente reconhecido.

Acredito que conseguiremos ultrapassar os problemas actuais se formos capazes de dar uma resposta verdadeiramente colectiva aos desafios que temos à nossa frente, o que exige transparência e um conhecimento rigoroso e completo da situação em que nos encontramos. Como em tudo na vida, para delinearmos o melhor caminho para atingirmos o futuro que ambicionamos, temos de saber de onde partimos.

Nos últimos dez anos, a economia portuguesa cresceu a uma taxa média anual de apenas 0,7%, afastando-se dos nossos parceiros da União Europeia. Esta divergência foi ainda mais evidente no caso do Rendimento Nacional Bruto, que constitui uma medida aproximada do rendimento efectivamente retido pelos Portugueses. O Rendimento Nacional Bruto per capita, em termos reais, cresceu apenas 0,1% ao ano, reflectindo na prática uma década perdida em termos de ganhos de nível de vida.

De acordo com as últimas estimativas do Banco de Portugal, “o crescimento potencial da economia portuguesa, o qual determina a capacidade futura de reembolso do endividamento presente”, é actualmente inferior a 1% e, em 2010, o valor real do investimento ficou cerca de 25% abaixo do nível atingido em 2001.

O défice externo de Portugal tem permanecido em valores perto de 9% do produto, contribuindo, por força do pagamento de juros ao exterior, para a deterioração do saldo da balança de rendimentos, cujo défice anual, de acordo com o Banco de Portugal, se aproxima rapidamente dos 10 mil milhões de euros, privando a nossa economia de recursos fundamentais para o seu desenvolvimento.

Simultaneamente, a taxa de poupança nacional tem vindo a decair, passando de cerca de 20% do produto em 1999 para menos de 10% nos últimos dois anos.

Em 2010, o desemprego atingiu mais de 600 mil pessoas, o que contrasta com cerca de 215 mil em 2001. Nestes dez anos, a taxa de desemprego subiu de 4% para um valor de 11%.

Os dados publicados pela Comissão Europeia indicam que, em 2008, o número de residentes em Portugal que se encontravam em “risco de pobreza ou exclusão social” superava os 2 milhões e 750 mil, o que equivale a cerca de 26% da nossa população. De acordo com as informações qualitativas disponibilizadas pelas instituições que operam no terreno, esta situação ter se á agravado nos últimos dois anos.

A margem de manobra do Estado português para acudir às necessidades de crescimento da economia e para combater os problemas de natureza social encontra-se severamente limitada, como o provam os níveis da despesa pública, da dívida pública e do endividamento do Sector Empresarial do Estado, a que acrescem os encargos futuros com as parcerias público-privadas.

Também a capacidade dos agentes nacionais acederem ao crédito e de financiarem, quer as suas necessidades de capital quer o crescimento da economia, está cada vez mais dificultada. O saldo devedor da Posição de Investimento Internacional, que corresponde ao grau de endividamento líquido da economia, é superior a 100% do produto.

Os mercados continuam a limitar fortemente o recurso ao financiamento por parte do sistema bancário nacional, o que se reflecte num agravamento das restrições de acesso ao crédito por parte das famílias e das empresas e num aumento das taxas de juro.

Além disso, o financiamento do Estado continua a ser feito a taxas anormalmente elevadas, condicionando o funcionamento do sistema financeiro português e da nossa economia. É elementar perceber que, como escreve o Banco de Portugal no seu último Boletim Económico, e cito, “o actual contexto de elevados prémios de risco da dívida soberana para Portugal implica um serviço da dívida externa acrescido”. Existe, assim, um risco sério de o pagamento de juros ao exterior travar a indispensável redução do desequilíbrio externo, mesmo no caso de um comportamento positivo das exportações.

Vários outros indicadores podiam ser apresentados para confirmar que Portugal se encontra numa situação particularmente difícil.

Neste contexto, surpreende que possa ter passado despercebido nos meios políticos e económicos o alerta lançado pelo Governador do Banco de Portugal, em Janeiro passado, de que, e cito, “são insustentáveis tanto a trajectória da dívida pública como as trajectórias da dívida externa e da Posição de Investimento Internacional do nosso País”.

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