A primeira questão está no cerne dos problemas com que a democracia moderna se debate. A legitimidade prende-se com a forma: com a arquitectura constitucional do exercício da escolha dos governos e do exercício do poder; a legitimação prende-se com o conteúdo: com a participação (discussão e contribuição) dos cidadãos, conduzindo-os a aceitar as decisões políticas, (percebendo, interiorizando, a sua bondade e razoabilidade).
Por exemplo, a Assembleia da República tem toda a legitimidade em ratificar o Tratado de Lisboa sem recorrer ao referendo; questiona-se é se toda a participação do país no processo de construção económica e social europeia está suficientemente legitimado pelos cidadãos - em minha opinião, não está (ver aqui um texto da Telos que cruza, em alguns aspectos, com esta problemática), o que não significa ser essa legitimação susceptível de ser recuperada ou remediada pelo recurso ao referendo: o referendo é uma má solução, do ponto de vista de técnica política, tendo o inconveniente adicional de funcionar como álibi da classe e do sistema político em dar resposta à ausência de legitimação da sua prática neste particular (e.g., vidé o argumento do referendo funcionar como um pretexto para a discussão política do processo de construção europeia). A talho de foice: a ratificação do Tratado pelo parlamento, para mim, foi a solução possível (ver por exemplo aqui) - a solução pior seria a não aprovação do Tratado por um dos Estados Membros (a ver vamos o que sucederá na Irlanda - ver aqui).
- O espaço político enquanto mercado é um paradigma sugestivo de explicação da actuação política nas democracias actuais - a soberania dos cidadãos mima a soberania do consumidor e a classe política remete-se ao papel de satisfazer aquilo que, na sua perspectiva, os consumidores (desculpem, os cidadãos) querem e, aquilo que querem - não é verdade? não é a "conventional wisdom"? - é, de forma simplista mas com um forte fundo de verdade: "pão e circo." (1)A tomada dos cidadãos enquanto consumidores é o seu processo de infantilização: dá-se-lhes rebuçados quando se pode (quando a situação económica o permite); não se lhes dá os rebuçados quando não se pode (quando a situação económica não o permite) invocando sempre as desculpas e os subterfúgios susceptíveis de os distrair - veja-se o profundo incómodo com que a classe política (toda ela) está a lidar com o problema da subida do preço do petróleo.Isso tem todo o tipo de consequências - uma das mais preversas, é a de que a classe política (os partidos políticos) deixam de lutar pela concretização de um projecto de sociedade e passam a funcionar como sindicalistas quando na oposição (defesa dos interesses destes, daqueles e daqueles outros - mesmo que essa defesa à outrance não seja compaginável nem coerente), ou como meros gestores do que se pode fazer com o orçamento quando no governo (e aqui haverão bons e maus gestores, gestores com mais ou menos corajosos, etc.).
Haverá muito mais a dizer sobre este tópico. Voltarei a ele - para já tenho de levar a minha filha ao ténis e, no entretanto, cumprimentos e preocupem-se, por favor...
__________________(1) PS (2008.05.21) : Esta parte da frase "...é, de forma simplista mas com um forte fundo de verdade: "pão e circo."" não está escrita da forma mais clara e pode dar lugar a confusões. Precisando: estou a referir que a classe política considera que o eleitorado actua em função do "pão e circo" a que tem acesso. Este meu juízo sobre a classe política é "simplista mas com um forte fundo de verdade". Mas o que é que penso? Penso que, numa aproximação simplista, o comportamento de parte (mais pequena do que podem pensar) do eleitorado pode ser condicionado pelo "pão e circo"; penso que esse comportamento deve ser contrariado; e penso ainda muito mais sobre tudo isso ... mas isso fica para ir falando.
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