É um artigo que foi referenciado como exemplar por uns quantos.
No entretanto, permitam-me destacar uma frase do que se diz abaixo, e que descreve bem as angústias dos anti-economicistas:
Já dizia o poeta britânico A.E. Housman que pensar que dois e dois são quatro, e não cinco ou três, tornou há muito o coração do homem pesaroso, o qual permanecerá assim por muito mais tempo.
Bem-aventurados os credores, porque possuirão a terra. Não se trata do Sermão da Montanha, muito embora os credores acreditem nele: se fôssemos todos credores não teríamos dívidas por pagar nem crises financeiras.
No entender dos credores, é assim que nos devemos comportar. Pois bem, estão errados. Como o mundo não pode negociar com Marte, os credores são inseparáveis dos devedores. Aqueles têm de acumular activos sobre estes, ou seja, acabam por tornar-se vítimas da sua própria armadilha.
Três das quatro maiores economias do mundo - China, Alemanha e Japão - são credores, gerem excedentes da balança corrente em tempos de bonança e de crise, e julgam-se no direito de repreender os devedores acerca das suas loucuras. A China, superpotência ascendente, adora admoestar os EUA pela sua imprudência. O Japão, aliado dos EUA, é mais discreto. No caso da Alemanha, as suas ambições estão mais perto de casa, uma vez que deseja transformar os seus parceiros da zona euro em bons alemães.
Os credores são vulneráveis. A sua economia tem capacidade para fornecer bens e serviços que agradam mais a quem pede emprestado e que, assim sendo, compram mais do que os residentes alguma vez comprariam. As economias deficitárias são imagens invertidas: a capacidade para fornecer esses bens e serviços fica aquém da procura. Estes excedentes e défices estão incorporados nos dois tipos de economia.
Entre os países credores, os produtores de bens e serviços transaccionáveis constituem um lóbi poderoso para o fornecimento de crédito aos devedores. Mas o financiamento privado vai acabar assim que os financeiros se aperceberem do quão mau tem sido o seu crédito. Os governantes ficarão, assim, entre a espada e a parede: ou deitam dinheiro à rua investindo novamente num mau negócio ou toleram um ajustamento brutal, na medida em que os seus mercados vão desaparecer. Ao castigar os devedores perdulários estão, também, a lesar os seus cidadãos.
Esta história está no cerne do que se passa actualmente no mundo. Tal como esteve no cerne da agenda da cimeira europeia realizada na semana passada e do encontro do G20, ontem e hoje em Cannes. Mas não só. Como referiu recentemente Mervyn King, governador do Banco de Inglaterra, está no cerne de todas as crises desde 2007: "Excedentes comerciais persistentes nalguns países e défices noutros não reflectem um fluxo de capital para países com oportunidades de investimento lucrativas, mas sim para países que se endividaram para financiar o consumo ou que perderam competitividade. Daí resultaram níveis de consumo elevados insustentáveis (quer público quer privado) nos EUA, no Reino Unido e num conjunto de outras economias desenvolvidas, e níveis de consumo baixos insustentáveis na China e noutras economias asiáticas, bem como em algumas economias desenvolvidas com excedentes comerciais persistentes, como a Alemanha e o Japão." Resumindo, todos ajudaram à festa (leia-se confusão) e agora todos têm de desempenhar o seu papel na busca de uma solução.
Já dizia o poeta britânico A.E. Housman que pensar que dois e dois são quatro, e não cinco ou três, tornou há muito o coração do homem pesaroso, o qual permanecerá assim por muito mais tempo. Ora bem, não é possível manter excedentes e recusar financiar défices alheios. No entanto, é isso que a Alemanha está a tentar fazer. É Berlim quem, de facto, controla o Banco Central Europeu. Além disso, tem o ‘rating' de crédito mais forte. Ou seja, pode decidir como os mecanismos de resgate vão funcionar. Infelizmente, mal, como escreveu o economista-chefe do Citigroup, Willem Buiter, no Financial Times. Porém, nem a França pode fazer mais do que resmungar sobre o resultado de tudo isto.
O país com crédito dita as regras. Os devedores têm de implorar, especialmente num contexto de moeda fixa, sempre que é preciso financiamento para atenuar um ajustamento imposto pela via da deflação. Os credores também podem insistir na sua interpretação das causas da crise. A Alemanha diz que a culpa é das más políticas orçamentais, pelo que é necessário corrigi-las e impor uma política orçamental para todo o sempre. Bem-aventurados os virtuosos, porque possuirão a terra.
Esta perspectiva do mundo tem três inconvenientes: está errada, é contraproducente e desestabilizadora. Está errada porque nem todos os países atingidos pela crise tinham políticas orçamentais irresponsáveis. Em certos casos, sofreram mais com o endividamento e o crédito privado irresponsáveis. É contraproducente porque se todos os Estados membros tentarem restringir a política orçamental ao mesmo tempo vão ficar mais pobres, incluindo os credores. Esta perspectiva é igualmente desestabilizadora porque, para sair desta armadilha, a zona euro terá de mudar para uma situação de excedente externo. Não é boa ideia solucionar os desequilíbrios internos agravando os globais.
A Alemanha quer reduzir o financiamento e, simultaneamente, manter excedentes externos elevados. Isto não vai funcionar. Haverá quem diga que a Alemanha se ajustou ao excedente na década de 2000. O que impede os seus parceiros de fazer o mesmo? A Alemanha entrou em excedente com países dispostos a gerir défices, mas Berlim não quer gerir défices. Perante isto, os seus parceiros não poderão gerir excedentes, a não ser que o façam com o mundo. Tal só seria possível se o euro fosse alvo de uma depreciação acentuada ou se os países fracos mergulhassem numa recessão, o que implicaria vagas de incumprimento soberano e bancário, que culminariam na desintegração da zona euro. Um ajustamento unilateral como este está condenado ao fracasso.
Entretanto, a zona euro parece ter concluído que precisa da ajuda da China. Não se percebe como chegaram a essa conclusão. Há dinheiro disponível na zona euro. O que falta é muito simplesmente vontade de assumir riscos por perdas. Em todo o caso, e como escreveu o economista chinês Yu Yongding no Financial Times, a China não vai assumir esse risco. É loucura pensar o contrário, ou não fossem os custos económicos ou políticos proibitivos.
No fim de contas, a China já tem de gerir o risco por perdas massivas nas suas reservas - avaliadas actualmente em 3,2 biliões de dólares. Essa saída de capitais públicos destinava-se a apoiar os seus excedentes comerciais, no entanto, ao tentar gerir a relação cambial com os EUA, acabaram por ser esses excedentes a controlar o banco central. A China pode bufar de raiva, mas só lhe restam duas hipóteses: continuar a comprar o dinheiro emitido pelos EUA para manter a competitividade, ou deixar de comprar. Se comprar, está a deitar dinheiro à rua investindo novamente num mau negócio. Se deixar de comprar impõe um choque a si própria.
Serão os credores que governam o mundo? Não propriamente. A curto prazo podem ameaçar fechar a torneira do crédito, mas os seus excedentes dependem da vontade e habilidade de outros gerirem défices. Seria mais sensato admitir que os perdulários pediram demasiado dinheiro emprestado porque os supostamente prudentes estavam dispostos a emprestar em demasia. A partir do momento em que aceitarmos que ambos estão implicados, ambos terão de se ajustar. Impor ajustamentos unilaterais a antigos devedores não vai dar resultado. Como a pequena Grécia está prestes a provar, os devedores podem infligir grandes danos a toda a gente, como os EUA descobriram durante a Grande Depressão. É urgente redescobrir esses interesses recíprocos. Os credores não vendem ao planeta Marte. Vivemos todos no mesmo planeta, por isso, façam o favor de chegar a um acordo para pôr a casa em ordem - e já.
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