30 de maio de 2016

Ideologia neoliberal e a ideologia anti-neoliberal

Não gosto que no meio de um argumento, onde eu seja uma das partes, surja o recurso ao "neoliberalismo" - como sou economista, isso assume, objetivamente, o caráter de um epíteto, de um insulto, de castigo por aquilo que eu penso de menos alinhado em relação à conventional wisdom da esquerda alinhada com a geringonça - é assim que me sinto; não dou parte do sentimento, mas ele aí está, como está a irritação com o que isso revela de estreiteza de visão e de falta de conhecimento. E estreiteza de visão e falta de conhecimento estão associadas a tomadas de posição ideológicas primárias. E na verdade, acontece, se existe uma ideologia neoliberal, existe, igualmente, uma ideologia anti-neoliberal. 

Um exemplo ilustra bem as duas linhas - o da denominada austeridade. Um economista inglês, de esquerda, anti-austeritário, há muito pouco tempo, lembrava que austeridade não é um programa de política económica, mas a consequência de uma política económica, corretamente, denominada de consolidação orçamental - essa política, em dados momentos e em dadas circunstâncias, tem de ser aplicada, embora com o resultado desagradável da austeridade. O que faz deste economista, de esquerda, um anti-austeritário, é que ele considera que a conjuntura económica mundial exigiria, neste momento, um programa de política económico, que vamos designar, para simplificar, de keynesiano, de estímulo orçamental, e que o esforço de consolidação orçamental, só deveria ocorrer, muito depois, noutra conjuntura, com a economia mundial a singrar, normalmente, fora do buraco. Na sua leitura (e de muitos economistas, incluindo, este vosso criado), os EUA, o Reino Unido, a Alemanha, etc., seguiram, e seguem, políticas de consolidação orçamental, a destempo e inapropriadas (no caso dos EUA, de modo mais específico, e menos direto). A razão para que isso tenha vindo a suceder, desdobra-se num conjunto alargado de causas, mas a ideologia neoliberal (e a sua variante alemão, o ordoliberalismo) fornece grande parte do acicate, da defesa teórica e da validação da linha seguida.

No entretanto, o mesmo economista, de esquerda, anti-austeritário (e todos os outros, incluindo, este vosso criado) excetua da sua reprovação da política económica seguida, generalizadamente, os países da periferia sul da Europa que terão de continuar o seu programa de consolidação orçamental pelo facto de pertencerem a uma união monetária, e só por essa via serem capazes de readquirem competitividade. É óbvio que esse esforço, com consequências austeritárias, seria atenuado se os países que o podem fazer, nomeadamente, a Alemanha, fizessem a tal política a contrário, uma política expansionista. Aqui haveria, numa análise mais fina, haveria lugar a muitas qualificações (por exemplo, eu não duvido que uma política de consolidação orçamental teria sido necessária, face à situação a que se chegou, mesmo que não estivéssemos na UEM - isto é a política de desvalorização nominal podendo dar uma ajuda, nunca seria só por si suficiente). Negar esta necessidade, é um exemplo da ideologia económica dominante em Portugal, nesta conjuntura política, a ideologia anti-neoliberal, que é restringida nos seus potenciais efeitos desastrosos pelos compromissos europeus.

O que se segue, é o exemplo da prevalência dessa ideologia, na ausência de quaisquer entraves: é o caso da Venezuela, mas poderiam ser chamados à colação muitos outros exemplos

Declaração de interesse: ... e para que não haja dúvidas, porque sou um economista assim-assim, sabendo com alguma precisão o muito que não sei sobre a área de conhecimento em causa , não sou, ideologicamente, nem neoliberal nem anti-neoliberal - não que não esteja em curso um projeto para saber os contornos e a designação da minha ideologia: o trabalho começou há muitas décadas, e não promete estar concluído nas próximas quarto décadas (desconfio que seria necessário mais tempo).

28 de maio de 2016

Uma nota biográfica sobre Dani Rodrik

Os meus conhecidos e amigos que são muito críticos (isso é uma descrição que peca por defeito) dos usos e costumes da economia atual, da globalização e da liberalização do movimento dos capitais, e do modo como a economia (aqui, na aceção do ramo de conhecimento) analisa e interpreta tudo isso, achariam interessante a leitura da nota biográfica (elogiosa), junta abaixo, do economista Dani Rodrik, feita, curiosamente, numa revista conceituada do FMI. Curiosamente, porque Dani Rodrik foi ao longo das últimas décadas, um dos críticos mais claros, consistentes e eficazes, da prática da organização e da "economics conventional wisdom" sobre os itens elencados acima. Estou a ler o livro dele referenciado no último parágrafo - já coloquei aqui algo desse livro, sobre modelos.

Weekend Reading: Prakash Loungani on the Extremely Wise Dani Rodrik: Rebel with a Cause

27 de maio de 2016

Não quero revoluções nem na China, nem nos EUA, e não é porque seja velho

Sou dos que têm um enorme relutância em prever uma qualquer crise chinesa na base da conventional wisdom assente nas más e definitivas notícias económicas, neste ou naquele indicador económico, e nas cidades construídas de raiz e desertas, e coisas quejandas - o futuro é Terra incognita e, principalmente, quando se trata de um país com a dimensão, a resiliência (económica) e a complexidade da China. Ao nível político, aí, as coisas fiam mais fino, e o que nos diz o texto abaixo (via Brad DeLong) é significativo, e por aqui pode passar a mudança de fase - no entanto,  a apostar, daria ainda ao regime chinês, e ao atual líder, mais uma ou outra década.

Andrew J. Nathan: Who Is Xi Jinping?: "Xi Jinping’s respect for Mao is not a personal eccentricity...

...It is shared by many of the hereditary Communist aristocrats who... form most of China’s top leadership today as well as a large section of its business elite..... Contrary to the Western consensus that Deng saved the system after Mao nearly wrecked it, Xi and many other red aristocrats feel that it was Deng who came close to destroying Mao’s legacy.... The children of the founding elite see themselves as the inheritors of... a vast world that their fathers conquered under Mao’s leadership. Their parents came from poor rural villages and rose to rule an empire. The second generation... do not propose to be the generation that ‘loses the empire.’... They see no irony in cheering Xi Jinping’s attack on corrupt bureaucrats although Mao purged their own fathers as ‘capitalist roaders in power.’ Mao’s purges they excuse as a mistake. But they see today’s bureaucrats as flocking to serve the Party because it is in power and not because they inherited a spirit of revolutionary sacrifice from their forebears. Such opportunists are worms eating away at the legacy of revolution.

The legacy is threatened by other forces... a slowing economy... laid-off workers... underperforming giant state-owned enterprises... bad bank loans... climate change and environmental devastation... downsize and upgrade the military.... Any leader who confronts so many big problems needs a lot of power, and Mao provides a model of how such power can be wielded.... Xi emulates Mao in exercising power through a tight circle of aides whom he can trust because they have demonstrated their personal loyalty in earlier phases of his career.... Xi wants ‘rule by law,’ but this means using the courts more energetically to carry out political repression and change the bureaucracy’s style of work. He wants to reform the universities, not in order to create Western-style academic freedom but to bring academics and students to heel (including those studying abroad). He has launched a thorough reorganization of the military, which is intended partly to make it more effective in battle, but also to reaffirm its loyalty to the Party and to him personally. The overarching purpose of reform is to keep the Chinese Communist Party in power....

Deng built a system... senior leaders were limited to two terms... divided leadership roles... made decisions in consultation with other leaders and retired elders. By overturning Deng’s system, Xi is hanging the survival of the regime on his ability to bear an enormous workload and not make big mistakes. He seems to be scaring the mass media and officials outside his immediate circle from telling him the truth. He is trying to bottle up a growing diversity of social and intellectual forces that are bound to grow stronger. He may be breaking down... the consensus about China’s path of development.... He has broken the rule that retired leaders are safe once they leave office, throwing into question whether it can ever be safe for him to leave office. As he departs from Deng’s path, he risks undermining the adaptability and resilience that Deng’s reforms painstakingly created for the post-Mao regime.

As the members of the red aristocracy around Xi circle their wagons to protect the regime, some citizens retreat into religious observance or private consumption, others send their money and children abroad, and a sense of impending crisis pervades society. No wonder Xi’s regime behaves as if it faces an existential threat. Given the power and resources that he commands, it would be reckless to predict that his attempt to consolidate authoritarian rule will fail. But the attempt risks creating the very political crisis that it seeks to prevent.

Charles Darwin depõe sobre a sua experiência com a escravatura

"On the 19th of August we finally left the shores of Brazil. I thank God, I shall never again visit a slave-country. 

To this day, if I hear a distant scream, it recalls with painful vividness my feelings, when passing a house near Pernambuco, I heard the most pitiable moans, and could not but suspect that some poor slave was being tortured, yet knew that I was as powerless as a child even to remonstrate. I suspected that these moans were from a tortured slave, for I was told that this was the case in another instance. Near Rio de Janeiro I lived opposite to an old lady, who kept screws to crush the fingers of her female slaves. I have stayed in a house where a young household mulatto, daily and hourly, was reviled, beaten, and persecuted enough to break the spirit of the lowest animal. I have seen a little boy, six or seven years old, struck thrice with a horse-whip (before I could interfere) on his naked head, for having handed me a glass of water not quite clean; I saw his father tremble at a mere glance from his master’s eye. 

These latter cruelties were witnessed by me in a Spanish colony, in which it has always been said, that slaves are better treated than by the Portuguese, English, or other European nations. I have seen at Rio de Janeiro a powerful negro afraid to ward off a blow directed, as he thought, at his face. I was present when a kind-hearted man was on the point of separating forever the men, women, and little children of a large number of families who had long lived together. 

I will not even allude to the many heart-sickening atrocities which I authentically heard of;—nor would I have mentioned the above revolting details, had I not met with several people, so blinded by the constitutional gaiety of the negro as to speak of slavery as a tolerable evil. Such people have generally visited at the houses of the upper classes, where the domestic slaves are usually well treated, and they have not, like myself, lived amongst the lower classes. Such inquirers will ask slaves about their condition; they forget that the slave must indeed be dull, who does not calculate on the chance of his answer reaching his master’s ears. It is argued that self-interest will prevent excessive cruelty; as if self-interest protected our domestic animals, which are far less likely than degraded slaves, to stir up the rage of their savage masters. 

It is an argument long since protested against with noble feeling, and strikingly exemplified, by the ever-illustrious Humboldt. It is often attempted to palliate slavery by comparing the state of slaves with our poorer countrymen: if the misery of our poor be caused not by the laws of nature, but by our institutions, great is our sin; but how this bears on slavery, I cannot see; as well might the use of the thumb-screw be defended in one land, by showing that men in another land suffered from some dreadful disease. 

Those who look tenderly at the slave owner, and with a cold heart at the slave, never seem to put themselves into the position of the latter; what a cheerless prospect, with not even a hope of change! picture to yourself the chance, ever hanging over you, of your wife and your little children—those objects which nature urges even the slave to call his own—being torn from you and sold like beasts to the first bidder! And these deeds are done and palliated by men, who profess to love their neighbours as themselves, who believe in God, and pray that his Will be done on earth! It makes one’s blood boil, yet heart tremble, to think that we Englishmen and our American descendants, with their boastful cry of liberty, have been and are so guilty: but it is a consolation to reflect, that we at least have made a greater sacrifice, than ever made by any nation, to expiate our sin." (from "The Voyage of the Beagle" by Charles Darwin)"

24 de maio de 2016

É bom ter isto presente

Nos dias em que o Reino Unido se prepara para decidir se sai ou não da União Europeia; em que a Austria quase elege um presidente da extrema-direita; onde a hidra dos nacionalismos levanta a cabeça (ou são as cabeças?) e por aí adiante, é bom ter isto presente:

The end of sovereignty | Prospect Magazine

22 de maio de 2016

Do peso do passado no presente

Um aparte a começar: num comentário a esta nota de Brad DeLong - que refere as consequências, hoje, da escravatura de há 150 anos - diz-se: "Maybe it's just a case of Tacitus having been right: "It belongs to human nature to hate those you have injured." 

Indo ao cerne da questão, a nota em causa dá conta de um estudo sobre a virulência mais acentuada do racismo em condados do sul dos EUA que tinham antes de 1865 uma maior população escrava. Este estudo é mais um exemplo do fenómeno da prevalência de atitudes, instituições (no sentido lato do termo) e memes, no longo prazo - outros exemplos de estudos do mesmo tipo, serão, que me recorde, as diferenças societais, hoje, nos Balcãs entre os territórios aquém e além da antiga fronteira austro-húngara; aquelas entre os territórios no Peru, antes sujeitos ou não à instituição do recrutamento dos índios (mit'a) para as minas; o impacto no desenvolvimento das sociedades africanas de terem ou não sido sujeitas à exportação de escravos; a correlação entre a permanência do anti-semitismo mais acentuado, em sub-regiões alemães, e pogroms de judeus, nas mesmas zonas, durante a Idade Média.

Não nos deveríamos nunca esquecer de que o que fazemos se repercute no futuro, e de modo muito mais penetrante e extenso do que se pensava.

PS: Na mesma linha de estudos veja-se este: Origens of growth: How state institutions forged during the Protestant Reformation drove development, de Jeremiah Dittmar e Ralf R Meisenzahl, Vox: - "Throughout history, most states have functioned as kleptocracies and not as providers of public goods. This column analyses the diffusion of legal institutions that established Europe’s first large-scale experiments in mass public education. These institutions originated in Germany during the Protestant Reformation due to popular political mobilisation, but only in around half of Protestant cities. Cities that formalised these institutions grew faster over the next 200 years, both by attracting and by producing more highly skilled residents."

21 de maio de 2016

Isto tudo pode correr mesmo muito mal

Isto é a coisa mais, sinistramente, convincente que li sobre o perigo Trump. O artigo, por vezes, é incómodo pelos pressupostos e itens usados para caracterizar o estádio atual da democracia norte-americana, mas vale a pena levar a leitura até ao fim. No entretanto, tenho mesmo de ler o que Platão diz sobre a fase avançada da democracia - já conhecia Eric Hoffer: o livro dele está traduzido em português sob o título, "Do fanatismo - O verdadeiro crente e a natureza dos movimentos de massa", Guerra e Paz, 2007. Ah, e tenho de reler isto.

America Has Never Been So Ripe for Tyranny

20 de maio de 2016

Uma reflexão de Darwin sobre as consequências da não exploração do homem pelo homem

Darwin discreteia sobre os entraves colocados ao desenvolvimento pelo comunismo primitivo  à luz do que via do estado dos índios da Terra do Fogo:

"The perfect equality among the individuals composing the Fuegian tribes must for a long time retard their civilization. As we see those animals, whose instinct compels them to live in society and obey a chief, are most capable of improvement, so is it with the races of mankind. Whether we look at it as a cause or a consequence, the more civilized always have the most artificial governments. For instance, the inhabitants of Otaheite, who, when first discovered, were governed by hereditary kings, had arrived at a far higher grade than another branch of the same people, the New Zealanders,—who, although benefited by being compelled to turn their attention to agriculture, were republicans in the most absolute sense. In Tierra del Fuego, until some chief shall arise with power sufficient to secure any acquired advantage, such as the domesticated animals, it seems scarcely possible that the political state of the country can be improved. At present, even a piece of cloth given to one is torn into shreds and distributed; and no one individual becomes richer than another. On the other hand, it is difficult to understand how a chief can arise till there is property of some sort by which he might manifest his superiority and increase his power." (from "The Voyage of the Beagle" by Charles Darwin)

Recados

Eu estou a ler "Economics Rules: The Rights and Wrongs of the Dismal Science" de Dani Rodrik. Um excerto, que contém lições para toda a gente, em particular, para os economistas e praticantes das outras ciências sociais - na verdade, se "the economists do it with models", não são só eles que o fazem:

"Rather than a single, specific model, economics encompasses a collection of models. The discipline advances by expanding its library of models and by improving the mapping between these models and the real world. The diversity of models in economics is the necessary counterpart to the flexibility of the social world. Different social settings require different models. Economists are unlikely ever to uncover universal, general-purpose models.

But, in part because economists take the natural sciences as their example, they have a tendency to misuse their models. They are prone to mistake a model for the model, relevant and applicable under all conditions. Economists must overcome this temptation. They have to select their models carefully as circumstances change, or as they turn their gaze from one setting to another. They need to learn how to shift among different models more fluidly."

19 de maio de 2016

Um vídeo, absolutamente, a ver...

A nota abaixo é complementada por um vídeo onde Branko Milanovic apresenta o seu novo livro Global Inequality: A New Approach for the Age of Globalization. Há quem coloque este livro na divisão do livro Capital no Século XXI de Piketty. Sugiro que vejam o vídeo primeiro; é o mais importante e a leitura da nota, depois do vídeo, será mais clara. Foi das coisas mais interessantes que vi nos últimos tempos. Para quem se interessa pela discussão das consequências da globalização, pelo fenómeno do crescimento da desigualdade e pelas eleições norte-americanas, é um labor incontornável.

Understanding Society: Global inequality

10 de maio de 2016

Jon Stewart sobre o momento político norte-americano e outras coisas

Vejam o vídeo: Jon Stewart com David Axelrod. Discussão inteligente e informativa, dura por vezes. Interessante o comentário sobre Hillary Clinton, que qualificaria com leitura da biografia de outro político norte-americano -  a de Franklin Roosevelt (a de James MacGregor Burns).

Jon Stewart is back with some strong words for "man-baby" Donald Trump