João Cardoso Rosas, com Pedro Adão e Silva (que tem aqui um artigo sobre Luís Filipe Menezes - sobre o mesmo, ver também, aqui e aqui) são das pessoas, em Portugal (das que conheço), que gosto mais de ler sobre política. Ambos são cronistas no DiarioEconomico. A semana passada, o primeiro escreveu uma crónica denominada de Esquecer o socialismo que começa com: "Nas últimas semanas, tem-se levantado um coro de protestos por parte de alguns membros do Partido Socialista contra a acção do Governo. A ideia geral não é nova. O Governo teria adoptado uma política de direita e, dessa forma, traído os ideias de esquerda que definem o partido que o sustenta. Ferro Rodrigues abriu as hostilidades lançando suspeições genéricas [ver aqui]. Mário Soares protestou contra o excesso de privatizações. António Arnaut lamentou o esquecimento do socialismo.A doutrina subjacente a estas críticas é redutível a uma fórmula simples: esquerda = estatismo + socialismo. Não tenho dúvidas de que, na cabeça de muitos dirigentes históricos do PS, esta aritmética é inabalável. O problema é que ela está errada. A esquerda não tem de ser estatista nem socialista."
Estarei mais ou menos de acordo com a substância do que é dito - utilizaria outra terminologia, no entanto. Não ponho grandes reticências a se afirmar que a questão da igualdade é central à definição do corpo ideológico que caracteriza a esquerda (como o afirma Norberto Bolio - mas talvez não por estas palavras). Também não questiono, em termos gerais, e na falta de melhor reflexão, as idéias básicas enunciadas na crónica, e à volta das quais se deveria estruturar a actuação da esquerda. Mas eu continuo a reclamar-me da tese de Feuerbach (retomada por Marx): a esquerda, definir-se-ia não só por um conjunto de valores (e.g., a igualdade), como também por uma tarefa, um objectivo estratégico: a da transformação do mundo. Naturalmente, a experiência do século XX, demonstrou que transformar o mundo, é assunto complexo, exigente e perigoso, havendo, nomeadamente, o risco, de no processo (como aconteceu), se "feiticisar" (positiva e negativamente) os instrumentos (e.g., plano, mercado, propriedade) e sacralizar corpos de conhecimento que se queriam, à partida, e paradoxalmente, dotados de cientificidade. A experiência tendo redundado, no que redundou - não só não se transformou como se regrediu - fez com que a prática de esquerda tivesse de ser exercida, de modo necessário e prudencial, no quadro da disciplina da democracia formal e plural.
Mas isso não deveria ter implicado desistir da transformação do mundo - esse objectivo deveria ser prosseguido nas democracias parlamentares, embora estas se traduzissem, a contrário, num quadro muito mais exigente e difícil, porque, o processo de transformação a ser eficaz, deveria agora incorporar como práticas, uma apreciação permanente e crítica do passado, mais conhecimento e mais informação sobre a realidade, mais reflexão e formulação política estratégica, mais organização e mais participação militante e cívica. Sem a assunção da centralidade da tarefa de transformar o mundo, sem a pressão da sua dinâmica, a esquerda esbate-se, trivializa-se: uns, repetem análises e defendem remédios batidos pela história; os outros, quedam-se pelas boas intenções na área do social (mais ou menos concretizáveis de acordo com a restrição financeira orçamental em presença) aplicando as receitas (as reformas) que o consenso técnico e a "conventional wisdom" política, de cada momento, exige - e, atenção, que fique claro, será bom, que pelo menos essas receitas sejam aplicadas. E entre as necessidades e problemas duma governação corajosa, e o referêncial das boas idéias e dos bons sentimentos, surgem as angústias.
No entretanto, este mundo de Deus, mais do que nunca, exige uma esquerda que queira, que saiba mudá-lo ...
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