5 de março de 2008

Retórica e política (V)

Pedro Adão e Silva, no Diário Económico, fala da A lição de Obama (não é ainda que falo dos resultados de ontem - estou ainda a despachar os rascunhos guardados). Mas o artigo diz coisas sobre as quais importa reflectir e vai de encontro às preocupações de muita gente sobre o País e o modo como nele se faz política. Alguns excertos:

"O aspecto mais relevante da campanha de Obama – e que explica muito do entusiasmo gerado – não se prende com a apresentação de políticas assentes em soluções técnicas inovadoras. Pelo contrário, é difícil encontrar na primeira linha da sua argumentação propostas políticas concretas. Mas o que poderia ser visto como uma fragilidade é substituído por aquilo que é a sua principal força: a capacidade de mobilização pela palavra através da construção de uma narrativa sobre o passado dos EUA, mas que se projecta no futuro.Desse ponto de vista, a campanha de Obama veio relembrar o que tem sido frequentemente esquecido: a política é uma conversa colectiva dos cidadãos sobre a coisa pública. Ora, como tem acontecido um pouco por todo o lado, quanto mais esta dimensão é desvalorizada e substituída por uma disputa entre soluções técnicas alternativas, menos relevantes se tornam as clivagens políticas – o que, por sua vez, faz crescer a tendência para o afastamento dos cidadãos da política."

"...O discurso de Obama assenta em dois grandes pilares: por um lado, o envolvimento cívico e o espírito de comunidade – ou seja, a ideia de que o bem comum não depende necessariamente de mais governo, mas, sim, da participação de todos; por outro, o que pode ser classificado como optimismo realista – uma visão do futuro que não é cega face às dificuldades. Pelo contrário, reconhece que a dimensão das resistências à mudança implica a mobilização colectiva de vontades, baseada numa narrativa optimista quanto ao futuro."

"...Naturalmente que a definição de boas políticas é importante, mas Obama está aí para demonstrar que o fundamental é a capacidade de desenvolver uma narrativa mobilizadora, que olhe para o futuro com optimismo realista. Enquanto, como acontece por exemplo em Portugal, o essencial da política assentar em sucessivos acertos de contas com o passado, combinados com discursos de passa-culpas e com meia-dúzia de metas quantificadas, a possibilidade de, de novo, mobilizar as vontades de todos será irremediavelmente diminuta..."

Duas notas:
  1. Em Portugal, nem se discute, ao menos, as soluções técnicas alternativas, para os problemas do país (e para a região); fazê-lo obrigaria a afinar, necessariamente, também, as posições ideológicas alternativas (logo, obrigando à construção das ditas narrativas);
  2. Em Portugal, é perigoso dizer que "o fundamental é a capacidade de desenvolver uma narrativa etc.". Vai ser interpretado de modo incorrecto e restritivo como mais do mesmo. Deveria dizer-se que essa narrativa mobilizadora deve incorporar, também, mas não só, as boas políticas, assentes, mas não só, nas boas soluções técnicas.

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