Que o filme "O Avatar" não é um filme trivial, bastaria, mais que não fosse, entrar em linha de conta com as reacções que provocou, e continua a provocar.
Eu gostei do filme, e gostei bastante. Que eu me lembre foi aquele que me proporcionou a sensação mais completa de imersão numa outra realidade; é um filme, esteticamente, belíssimo; a mensagem que carreia não me interpela, nem me agride, nem a nível emocional, nem a nível ideológico. É um filme de esquerda. O enredo não deserve o seu enquadramento formal. É um filme de aventura, de ficção científica, muito melhor nesta vertente, de que muitos outros. Em nenhum circunstância me atreveria sequer a sugerir que seria um grande filme no sentido de vir a obter a consagração canónica que têm todos aqueles que o cinéfilo culto - não é o meu caso - poderia listar. Penso que ninguém, na ausência de uma opinião taxativa do "Cahiers du Cinema" o diria [estou a ser irónico, mas não à custa da revista - sem ela muitos
realizadores de primeira linha de Hollywood nunca teriam alguma vez
atingido a respeitabilidade e o reconhecimento de muita da
intelligentsia da esquerda europeia]. Não que pareça haver dúvidas, no entanto, que será uma referência na história do cinema pela parte que diz respeito aos efeitos especiais.
Por isso mesmo, foi muito curioso, particularmente no caso dos EUA, acompanhar as críticas, positivas e negativas, de uma intensidade desmesurada, vindas dos ângulos de análise, e de interesse, os mais díspares possíveis. O seu enredo foi dissecado do ponto de vista científico, político, religioso, militar e económico; as críticas socorreram-se da alusão a referências filosóficas, antropológicas, históricas e cinematográficas; a seu propósito discutiu-se a actuação dos antropólogos na guerra do Afeganistão; a mineração das areias betuminosas no Canadá; o realizador foi acusado de ser um traidor à classe: "contradição: como é que um bilionário faz um filme com este enredo". Enfim, é assim mesmo. Por isso, convenhamos, o filme não é sentido, para o bem, ou para o mal, como um filme trivial, a não ser para (alguns) críticos
blasés do Expresso, e outros intelectuais da praça que não lhes ficam atrás. Ah, no entretanto, a esmagadora maioria do comum dos mortais foi ver o filme, com os filhos, e todos gostaram. Ora, aí é que bate o ponto.
O Avatar, como qualquer razoável (boa, como queiram) obra de ficção científica, não é de antecipação. Os aspectos de antecipação que tem servem como quadro da história, como condição de um mínimo de verosimilhança e de consistência - grandes obras de ficção científica, que falharam de forma total no que respeita à antecipação, continuam a ser grandes obras, e lidas como tal (os que não conhecem, ou não amam a ficção científica, sofrem do
síndrome de Júlio Verne). A ficção científica trata sempre do presente; equaciona as perplexidades, as dúvidas, as angústias, do presente, mesmo quando elas digam respeito, também, a preocupações (actuais) quanto às evoluções futuras; o seu quadro formal e instrumental específico serve para destacar, sublinhar, iluminar, tudo isso. E será esse o aspecto que deve ser salientado como mais importante no filme, e que melhor explicará grande parte das reacções: estamos face a um "panfleto" muito bem feito contra certo capitalismo norte-americano actual; contra certa actuação norte-americana em relação aos outros; e insere-se numa crítica mais ampla do que foi (e continua a ser) o relacionamento dos europeus e dos norte-americanos com os indígenas de toda a parte. Como é claro, é também um manifesto em favor da ecologia, da sustentabilidade, e por aí adiante. E é também um projecto comercial, cujo sucesso é medido pelos resultados. É um filme deste tempo; precisamente, deste momento. Percebe-se a reacção da direita norte-americana, e de todos aqueles que dela são "compagnons de route" - é em parte explicada pelo sucesso popular do filme; pelo facto de milhões de pessoas estarem a absorver desprevenidos (ideologicamente) a "mensagem subliminar" do Avatar. Não se percebe é que intelectuais da esquerda à esquerda do PS, não percebam isso - [esta última frase, sou eu, a ser retórico: claro que percebo!].
Abaixo, as referências que coleccionei a respeito do Avatar. Arrumei-as por tópicos, e em um ou outro caso, chamo a atenção para o seu conteúdo.
As críticas ao Avatar
Avatar: Film-making and Human Destiny:
"
Judging by the abundant reaction to Larry Klaes’ recent article on
James Cameron’s Avatar — and by the continuing commentary in society at
large — Larry seems to be vindicated when he says the film has become a
focal point of discussion for many in the general public. Having
engaged in the lively debate in these pages, Larry now wraps up our
Avatar coverage with a look at the film’s message and its
ramifications, along with comments on its use of science."
Klaes on Avatar: Part Two:
"We now wrap up Larry Klaes’ essay on Avatar (and Centauri Dreams’
coverage of the film) with a look at how and why humans will expand
into the cosmos, with reflections on our society’s portrayal of aliens
and of itself. How much does popular entertainment shape our conception
of what we can and cannot do? Do we, as a species, have what it takes
to journey out among the stars?"
Athena Andreadis, Ph.D.: Cameron's Avatar: Jar Jar Binks Meets Pocahontas:
"The worldbuilding is equally shoddy. As I said in Science Fiction Goes
McDonald's, scientific accuracy is not crucial in SF. However,
consistency and informed imagination are. A moon as close to a gas
giant as Pandora is would be awash in radiation and wracked by
earthquakes and volcanoes like Jupiter's Io. Also, its independent
biogenesis would give rise to life forms that would not remotely
resemble us. But let's concede that point for the sake of audience
identification. Since all Pandoran animals are six-limbed and
four-eyed, the Na'vi would share these evolutionary attributes. This
would actually make them far more interesting."
Na perspectiva da plausibilidade científica (evolução)
Are Dolphins People?:
"Lori Marino at Emory University is taking a scientific approach to
determining how human dolphis are. She's simply running them through an
MRI and measuring the complexity of their brains. The result,
unsurprisingly, is that dolphins are extremely smart. Their brains,
according to Emory, are more complex than any other non-human brain,
beating out Chimpanzees for the title." Não perguntem, mas achei que até fica bem aqui.
Na'vi Cognition and Culture | International cognition and culture Cameron, da próxima vez, terá de contratar Dawkins para unir as pontas [estou a brincar]. O que é impressionante, e voltamos ao mesmo, nenhum filme de FC foi alguma vez sujeito a um escrutínio deste tipo - eventualmente, isto até poderá ser muito bom em termos de enriquecer o enredo das próximas sequelas d'O Avatar
Na perspectiva religiosa
Na perspectiva da sustentabilidade (Pandora como uma alegoria da Terra)
Na perspectiva da economia e da política
Marginal Revolution: Avatar "[...]
People who can reach other planets still fire bullets from machine guns [...]" De acordo, mas o que é ainda mais implausível é
que terrestres pensando como aqueles pensam consigam chegar às estrelas
- dão cabo do planeta antes disso. Mas, se a nossa gente - os da Exxon
e quejandos - conseguisse a tecnologia para chegar às estrelas, agora,
do pé para a mão, como acham que seria, digam-me lá!
Avatar is Great and Libertarian - Stephan Kinsella - Mises Economics Blog:
"And at its core it was very libertarian: it was about a group of
people (the Na'vi) defending their property rights on the world Pandora
from aggressors (the human invaders), and about one of the humans (a
soldier named Jake Sully) deciding to join and help the right side." Adorei esta: a defesa dos direitos de propriedade, "
indeed".
In Defense of Avatar by David R. Henderson -- Antiwar.com:
"Some writers who are generally my allies in favor of capitalism and
free markets have been critical of the movie Avatar. Reihan Salam, for
example, on Forbes.com, writes, 'In a sense, capitalism is the villain
of Avatar.' Edward Hudgins, a fan of Ayn Rand, as am I, writes that
Avatar is 'loaded with tired, mind-numbing leftist clichés.'
But I don’t think Avatar is an attack on capitalism. One could leave
the movie and have no idea, based on just the movie, about James
Cameron’s view of capitalism. And while it did have some clichés (most
movies do), I didn’t find it loaded. So what is Avatar? In fact, Avatar
is a powerful antiwar movie – and a defense of property rights. For
that reason, I found it easy to identify with those whose way of life
was being destroyed by military might. (Warning: slight spoilers
ahead.)"
The Case Against 'Avatar' - Forbes.com:
"For the last 200 years, humans have grown taller, stronger and
healthier. This progress has been fastest in the countries that gave
rise to the Industrial Revolution, yet it has spread throughout the
world, sparking a transformation that economists Robert Fogel and Dora
Costa call techno-physio evolution, 'a synergism between technological
and physiological improvements that is biological, but not genetic,
rapid, culturally transmitted, and not necessarily stable.'" Este não ouviu falar da dieta do paleolítico, nem do que se passou na passagem do paleolítico para o neolítico. Isto que diz é verdade, mas pressupõe que nós, os filhos da industrialização, somos mais saudáveis do que os povos primitivos que ainda existem: não somos!
Russian Communists: Ban Avatar! | FP Passport:
"U.S. conservatives have blasted James Cameron's blockbuster space epic
Avatar for depicting U.S. marines as villains, others have critiqued it
as a patronizing tale of a white American rescuing a native people from
the ravages of imperialism, but the most unique criticism of the film
yet may come from the St. Petersburg Communist Party:" É o
nonsense total.
Na perspectiva da formatação dos espíritos (particularmente, das criancinhas)
Avatar, not Ed, will make the case on climate:
"[...] My son
believes in these creatures' message and has started lecturing me on my
environmental commitment. Why do we need to cut down a tree for
Christmas? Does he really need all that packaging round his new iTouch
(he does, however, still need the iTouch).
The film is brilliant PR -- smug and simplistic but effective and
energising. [...]No wonder the American Right hates it, with one commentator calling it
'a deep expression of anti-Americanism'. They understand that any
nation that loves this movie will not want to continue pumping oil out
of the Alaskan National Park. [...]
It may not be every 40-year-old's first choice, but anyone with
children -- which includes most politicians -- is likely to see it.
[...]The political elite is beginning to get the message -- audiences do
care about the planet, they just don't want to be lectured about it by
hypocritical politicians. They want help to do their bit, not
hectoring.
Avatar isn't Star Wars, Apocalypse Now or even The Lord of the Rings:
it's not a classic. But few films manage to change perceptions. The
Sound of Music rehabilitated the Austrians, Guess Who's Coming to
Dinner ridiculed racism, Philadelphia maybe changed our views about
Aids, Kramer vs Kramer tackled divorce. Dr Strangelove made the best
case for unilateral nuclear disarmament. [...]"
Na perspectiva militar, e antropológica
Avatar: anti-capitalist, not anti-military - Dragonfly - Open Salon
Open Left:: Avatar, Afghanistan & Obama's limited war on the "War on Science"
Correio da Manhã: Joana Amaral Dias "Para Philip K. Dick, na ficção científica não se fazem predições,
inventam-se outras sociedades ou outros universos, tendo como matriz a
nossa realidade. Os protagonistas não são as personagens, mas as
ideias. No caso de ‘Avatar’, as ideias visuais. O seu realizador, J.
Cameron, realmente criou um novo mundo, de árvores colossais, flores
fosforescentes, fauna estrambólica e gigantes azuis que falam uma
língua bizarra. E é por esse universo de detalhe e espanto que o filme
vale. Não pelas suas personagens ou história.". Boa citação de Philip K. Dick. Depois, é aquilo que se poderia esperar...